quinta-feira, 14 de outubro de 2010

coisas de crianças

a menina cresceu. tivera sido toda a infância uma menina rechonchuda, de cabelo castanho-aloirado e um olhão azul profundo. profundo e intenso. a madrinha dera-lhe um fatinho de lã azul... um amor! era um conjunto todo azul com umas riscas pretas. uma saia. uma camisola. uma boina. dia de páscoa. domingo de páscoa. o pai muito orgulhoso. a mãe babada. a mãe babada foi buscar a máquina fotográfica. o pai sentou a menina no capô da carrinha, deu um ovo de chocolate grande para a menina segurar. olha o passarinho! estalinhos com a ponta dos dedos. a menina sorria.

click!

um momento registado para sempre. eram tempos difíceis, uma época de muito trabalho, pouca boémia. o dinheiro era pouco e não havia lugar para extravagâncias. todavia "tudo o que é pequenino tem graça" e era o sorriso da menina que dava tom à roupa - o azul mais azul, a lã mais macia, a beleza acentuada pela simplicidade da época, pela infância da criança.
tirou-se outra fotografia. os primeiros passos a correr registados num flash rápido de uma atenção extremosa, maternal, amorosa; um flash da menina dos olhos dos papás a correr, com um ovo de chocolate na mão, os caracóis a dar gosto à aragem fria daquele dia ainda invernoso, por baixo daquela boina azul aos saltos, os braços abertos a correr em direcção ao colo, um sorriso rasgado, uma voz de criança. a madrinha aparecia poucas vezes. mas a menina adorava aquele tom de chocolate da pele dela. e do sorriso dela.
a casa da madrinha era grande mas mal arranjada. antes da varanda o chão era uma poça de lama no inverno. quando se entrava a sala era enorme, fria; o mobiliário era substituído por um cobertor enorme ou seria uma manta (?), bem... com muitos brinquedos à volta, bonecos, peluches, carros. tinham dois filhos, cinco anos mais tarde. uns sofás velhos, uma espécie de móvel com a televisão e o rádio. depois se seguíssemos pelo lado direito havia um quarto de arrumações extraordinariamente desarrumado, outro do rapaz e um seguinte com duas camas para a filha mais velha - era onde dormia a afilhada nesses fins-de-semana que lá pernoitava. em frente havia a casa de banho em tons de rosa. e a cozinha com as bancadas cheias de pratos sujos e panelas por lavar. nem por fora ou por dentro a casa era pintada, tirando o mosaico do chão e os azuleijos da casa de banho não havia quaisquer cores na casa. da janela da cozinha via o padrinho de volta das porcas com os porquinhos, patos e galinhas à solta e uns belos legumes cultivados ao lado. no armazém abaixo havia montes de espaço. muitos gatos. alguns cachorritos. muitas pulgas. uma sociedade inteira pulguenta! e máquinas de trabalho. e camiões. mas a menina gostava de chapinhar na lama. de correr atrás dos patos e das galinhas. olhar os porquinhos em bicos de pés, detrás da divisória. apanhar figos e ovos. a menina gostava de andar à solta. brincar junto à estrada e ficar com carrapatos agarrados às meias e apanhar umas ervinhas que se enrolavam na palma da mão. andar no jipe amarelo a cair de podre do padrinho. encontrava sempre grandes tesouros - bonecos minúsculos vindos dos ovinhos de chocolate da kinder surpresa.

a menina cresceu. agora era uma mulher. cheiinha. o cabelo mais escuro. mas o azul... o azul continuava profundo, intenso. ria-se com a mesma intensidade que a inocência nos seus gestos em criança. era mais contida - já não brincava à chuva nem chapinhava na lama nem corria atrás de patos e galinhas mas sorria quando via, sem esperar, uma criança suja de terra, despenteada, sorridente, com os olhos brilhantes das descobertas campestres.

2 comentários:

  1. Eu vejo aqui uma crónica até porque, por coincidência, vi um estudo acerca do riso. Vem no correio da manhã de hoje. Posso depois te mostrar quando falarmos melhor. E, além de estar bem escrito de nos agarrar na leitura , mostra que fica sempre um encanto na vida adulta mas que a nostalgia está presente . Talvez porque perdemos o sentido de nos " surprendermos" como o fazíamos anteriormente. E daí, já sorrimos pouco. Não consegues, nem tu nem eu, fugir ao síndrome da nossa cultura portuguesa, um pouco satiturna, um pouco estado de alma.Mostra o estado nosso, o estado(alma) português, mas, também, a arte que corre no sangue Lusitano e se expressa na Língua de Camôes.
    Gosto como te expressas. Mais neste do que no anterior que escreves-te.
    Assim que vi a ligação no meu face vim de imediato ver e ler. E ..curti a brava.
    AO meu conselho se queres mais comentários realmente, tens que ir muito aos blogues de outras pessoas, comentar, pesquisar imenso e "perder" imenso tempo nessa interecção "social". Eu não o faço, porque tenho um outro onde sou lido muito mais pelos brasileiros, daí, eu não ligo muito ao elogio, creio até que é uma forma simpática e negligente de nos enganar.( pelo que acho, mas é importante o comentário, o mais grave não é ter medo da crítica, é o não ter nenhuma) Mas a minha opinião é sincera tal como sabes. Porque repito: o primeiro dia que vi o teu blogue gostei dos primeiros paragráfos. Quem sabe amiga, um dia vamos eu e tu e o teu namorado assistir ao documentário de Saramago a exibir em Lisboa. Abraços e rigor na escrita ( coisa que eu deveria fazer lol :)) jinhos

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  2. Nas meninas, os azuis são intensamente profundos, sempre! Desde que meninas...

    Beijo

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