quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

a felina

procuro o refúgio na brusquidão do mar.
quando o vento varre tudo na sua passagem, abro os braços, lanço-me em desafio...
por um fio não deixo cair a lágrima suspensa nas pestanas trémulas.
abro as goelas em gritos mudos no abismo porque não há eco que devolva amor. o eco propaga. e o que sai de mim, às vezes, parece mais uma praga que uma palavra bonita, sagrada.
na rebentação forte do mar, nas investidas constantes na arriba, arrepia-me o fascínio da destruição de uma massa tão poderosa, desfeita em milhares de milhões de micro partículas que me ensopam a sweat sem que eu dê conta, acalmam a rebeldia dos últimos fios de cabelo a crescer, contra um rochedo, imóvel. encontro-me por instantes para logo me perder em pensamentos turvos, sem nexo, sem história, são flashes soltos que não encaixam em lado nenhum.
Ziva, a felina
a noite chama por mim.
deito-me, finalmente. puxo a roupa para cima e em posição fetal fico à espera que o meu corpo aqueça e, por fim, adormeça; se renda, a algum descanso merecido quando então, oiço o som familiar das patinhas da felina cá de casa, dona do sítio, dona de mim!
nem se ouve o salto para cima da colcha... só me apercebo dela a aninhar-se em mim, de focinho húmido contra a minha cara, a ronronar com tanta intensidade junto do meu ouvido, que consigo sentir todo o meu corpo ser atravessado naquela vibração...
o refúgio encontrou-me. 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

tempo sem relógio, terra de ninguém

saí cedo, não vi as horas.
a cidade está dormente ainda; ainda mal amanheceu, até o sol está envergonhado! como é bela esta terra que não é minha; nem minha nem de ninguém por que não pertencemos a lado nenhum. quando muito, se a vaidade permitisse pertenceríamos aonde está o nosso coração. e isso faria de mim nómada!
às vezes com o pensamento na lua, que brilha um brilho que não é seu; às vezes compenetrado a sete palmos abaixo da terra, eis a questão que não sei onde me encontro na maior parte de tempo nem sei o que ando aqui fazer. perco a noção do tempo como se tivesse hipótese de ser imortal!, por ilusão sinto-me a planar num tempo sem relógio, numa terra de ninguém, só.
oiço as teclas de um piano que me embriaga e me leva a sentir, a amar o corpo de alguém como se eu te pudesse tocar agora... 
podia ser o corpo de uma mulher. é sempre tão perfeita a mãe natureza... cada curva desenhada, cada fio de cabelo que desliza nas costas de violino de um corpo feminino, o sorriso que se desenha num olhar de menina não canta, não é sereia, mas encanta como o de uma deusa que veneramos. 
as vestes das santas são tão delicadas!... ninguém diria que a maioria são feitas de barro de tão subtil, a passagem das cerdas do pincel.
as rosáceas das maçãs dos rosto denunciam uma vergonha infantil de quem foi apanhada em flagrante e no entanto o descaramento desarma-me e espanta-me como quando abro uma romã.
PENICHE, 06/12/2016

do meu lado oiço o mar que interrompe friamente a minha respiração ofegante. paro. recupero o fôlego depois de me ter lançado num sprint estrada abaixo. sinto na cara a frieza da aragem matinal, no coração o calor de quem ama só por que sim!

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

eu nunca quis o mundo

eu nunca quis o mundo todo.
nunca quis o mundo todo na minha mão.
mas cada horizonte que o meu olhar alcançava... ah aquela vontade de me lançar ao mundo!
o mundo lançava um apelo numa flor, no vento, no tempo, nas páginas de um livro novo por descobrir, num livro velho que guarda segredos que só o tempo conhece.
nunca quis o mundo todo. 
quis ser o mundo de alguém. de muitos alguéns até! como muitos tiveram a oportunidade de fazer parte do meu mundo, parte de mim. hoje são apenas páginas amareladasde um livro que não abro. 
hoje escrevo um livro novo. dia a dia, página a página. 
continuo a não querer o mundo.  
será que o mundo me quer, a mim?!
e o que quereria ele de mim? 
lanço no vento a gargalhada mais infantil que há em mim enquanto enxugo as lágrimas de menina crescida, às escondidas.
gente grande não chora. 
gente grande arregaça as mangas, levanta o nariz, levanta os olhos, encolhe os ombros quando não há nada a fazer e segue caminho.  mas há sempre alguma coisa para fazer; haverá sempre alguma coisa que se possa fazer!
por anos, o caminho, à saída do portão de casa, era de terra batida. de verão provocava uma poeira, de inverno chapinhava nas poças que a chuva deixou para espelhar os meus grandes e curiosos olhos azuis. corri nos campos verdes de milho e arranhei-me nas espigas douradas que dão o pão.
o vinho tinto que bebo agora celebra o melhor e o pior que há em mim. 
não me venhas buscar agora que continuo a não querer o mundo todo. 
quero lançar-me ao sal que o mar tem caso não haja amanhã.
quero banhar-me no doce mel que sinto nos lábios de um beijo que promete a eternidade do tempo.
quero continuar a olhar o horizonte e sonhar com o que há para lá dele.
porque o mundo é muito grande e o meu cabe perfeitamente dentro dele!

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

estações

MONET - mulher com parasol 1886
percorro um caminho de terra batida entre árvores que deixam cair as folhas porque chegou o outono. o ar respira-se até diferente... 
ao fundo ouve-se uma gargalhada. uma menina de cabelos soltos e encaracolados, tem um laço vermelho no cabelo, as bochechas rosadas; a gargalhada ecoa entre a folhagem seca que levanta à minha passagem, à passagem do vento que começa a levantar-se... o sol ao fim da tarde é tão bonito, tão mais familiar que o do Estio, ainda que, pouca coisa supere um pôr do sol na praia, em maré baixa, quando a imensidão do mar acalma e beija-nos os pés como se fôssemos dignos de ser venerados...
sinto um arrepio... está frio. já é inverno. o sol é dourado mas as noites são mais frias ou então sou só eu que estou sozinha em mim. tão difícil lidar com a ausência do teu riso, tão difícil lidar comigo quando estou contigo esperando a surpresa que nunca chega. 
como uma rosa que perde o seu esplendor numa jarra, aos poucos... e torna-se a natureza morta, como dizem os grandes pintores!
a menina deixou o baloiço, foi para dentro de casa. deixou a boneca para trás.
deixamos tanto para trás por que queremos alcançar tanto num futuro que nunca está presente.
já chove. 
não há nada mais bonito que um céu estrelado em janeiro. as estrelas têm mais brilho ou se calhar são só os meus olhos encharcados... 
estará realmente frio ou será apenas a minha pele seca que reage à lágrima que beija a minha mão como uma benção? 
não tarda a primavera traz consigo a melodia do bater de asas das borboletas e dança das andorinhas...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

pelo menos há sol

levanto-me atordoada... estava a dormir?! mas eu estava a dormir?
mas era tão real... o toque, o ambiente... ainda que sinistro... tudo tão estranho, tão escuro, sem nexo, sem local, sem ninguém conhecido...
volto a deitar-me, ouvindo o vento lá fora zangado que assobia à minha janela, faço de conta que não o oiço e caio no sono novamente. corro muito, sem sítio para onde ir. falo muito sem dizer nada, os lábios nem os sinto, o coração nem o oiço. há água. é uma poça, outras vezes o fundo de um fosso. hoje não se sente o cheiro. mas as cores parecem aquela mescla de tinta na paleta que o pincel esborratou depois de pintar a tela. 
pinceladas largas, cores vivas, gosto de imaginar assim. quando abro os olhos não compreendo a realidade paralela em que me encontro. acordo. levanto-me.
já é de manhã. o vento ainda está zangado e passa entre as caniças querendo levá-las consigo, arrancá-las da terra com a mesma ira com que Zeus lança a trovoada sobre o mar e depois se delicia com o reflexo daquela luz fria no mar revolto. é uma criança. ri à gargalhada do nosso infortúnio e do seu desdém.
pelo menos há sol. 

sábado, 19 de janeiro de 2019

inverno

olhei-me no espelho e não reconheci os olhos azuis que me observavam os movimentos mecânicos, automáticos.
sentei-me junto à mesa de carvalho, na sala, peguei num papel, numa caneta, escrevi o nome. não reconheci. pareceu não fazer sentido.
liguei o computador. 
automaticamente as letras juntam-se, construindo palavras, formulando frases, leio uma e outra vez; não faz sentido. apago uma e outra vez frases inteiras, meias frases, e escrevo. é um mundo de letras que há em mim e quem me dera conhecer a imensidão de possibilidades de outras palavras, que todas juntas criam com outra pessoa com mais cultura ou apenas com um dicionário ao pé.
não reconheço a imagem no espelho. sou eu. mas não pareço eu. onde estive até este momento? é a pergunta que se instala. e agora? outra surge. que vem a seguir...? parece uma vozinha vinda não sei de onde em sussurro absoluto para não acordar o bebé que dorme profundamente na sua caminha pequenina.
pé ante pé, chega-se a mim, esta sensação de não é nada, não é ninguém, não tenho tempo, camuflada sei lá de quê. 
o bebé acordou. enrolo os meus dedos naqueles caracóis desalinhados, dou-lhe um beijo, inspiro o seu cheiro, aconchego-o; se voltar a acordar deito-o comigo. 
as palavras continuam a querer sair, umas atrás da outras; todos os dias é a mesma coisa! vou deitar-me e os pensamentos afloram como um novo alvorada. mas ainda faltam algumas horas para voltar a acordar e depois não tenho tempo outra vez. 
adormeço neste desassossego e acordo como quem vai a cair num abismo, cansada, desgastada, imersa em qualquer coisa que também não tem nome. sonho sonhos sem sentido racional nos intervalos das horas que não sou acordada pelo choramingo do bebé. já nem dou pelas horas a que chegas a casa e não fosse a gata ter frio nem por ela dava a dormir em cima de mim, ronronando como se me quisesse embalar.
gostava de ter voz para cantar um melodia só; uma melodia que fosse suave e quente. mas não tenho agudos e facilmente é uma voz seca e rouca, amante destes dias frios de inverno que gelam até a alma.
no desalento que o inverno me traz e me acompanha até a primavera chegar, os dias vão passando entre a chuva que bate de estocada nos vidros sujos das janelas e o zumbido zangado de um vento que passa e tudo quer levar consigo; até lá apenas o sol se esforça para manter o seu encanto assim como o meu sorriso genuinamente se desenha num rosto pálido de rosáceas vivas e olhos azuis.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

a cerimónia fúnebre

atrás de mim um ranger de porta que interrompe o burburinho que se instalou há minutos.
alguém dá os primeiros acordes na viola.
as velhas com o terço na mão, fungam o pingo do nariz à espera da sua hora e fazem contas à vida, quantas vidas viram nascer, quantas vidas já perderam por entre os dedos onde dança a conta e quantas mais verão até que por fim, seja a sua, a vida, a chorada entre as irmãs viúvas que não são de sangue.
um sino tocou.
as pessoas levantam-se para ouvir aquele que representa o Pai, "hoje é dia de celebração..." o burburinho termina. a viúva, cabisbaixa, levanta a cabeça; os familiares escutam; os mais cépticos levantam o sobrolho. "hoje este irmão nasceu!" e não se ouve nem o respirar arfado de uma constipação nem um fungar de um nariz vermelho do choro que teima em não sossegar. o padre continua "hoje é o dia em que perguntamos mas porquê? (...) e não interessa que não acreditem Nele! por que hoje Ele estará na nossa casa. é o dia em que precisamos de Deus, precisamos da Sua presença, do Seu conforto, é hoje que precisamos que esteja connosco! e Ele vai lá estar convosco! somos nós quem sofre..." só me lembrava daquelas crianças, que na fúria inocente da idade de quem não se conforma com um simples é assim, aquele homem dava as respostas muito antes de ouvir as nossas perguntas. "dizem-me que não sabem o que dizer (continuava) pois que está em paz. o nosso irmão hoje está em paz. nasceu outra vez. está na vida eterna, ao lado do Pai. o seu percurso terminou." eu queria absorver cada vírgula daquele homem sábio por que o que raio se diz a uma criança de sete anos acerca da morte?! até nós, adultos, nos revoltamos! nem nós, adultos, sabemos o que dizer uns aos outros...
foi feita a comunhão.
foram tocadas as violas, ouvidas as vozes em melodia que não lembro a letra.
terminou a cerimónia fúnebre mais bonita que ouvi até hoje ainda que triste como é óbvio. palavras sábias, confortantes, amigas.
a despedida foi feita, finalmente.
voltámos todos para casa, resignados com a nossa realidade.

há coisas no mundo

há coisas no mundo para as quais ainda hoje não tenho respostas...

 
por que é que o mundo é redondo e falamos em quatro cantos?

tive um período na minha infância, após a morte da minha irmã, que todos os dias eu achava que nada daquilo era a minha realidade, de facto; era um sonho. eu acreditava piamente que estava a dormir, profundamente, na minha cama de pinho-mel, cabeceira arredondada, quase com um metro de altura do chão e com lençóis de flanela com patinhos desenhados, eram os meus preferidos; ao fundo a minha mesinha de cabeceira com um candeeiro que projectava imagens (não-sei-de-quê) no tecto. no tecto, outro candeeiro em pinho-mel para condizer com a mobília com umas colunas pequeninas tipo românicas. de um lado a escrivaninha que viria a guardar por anos um caos de segredos e rascunhos dos tempos de escola; do outro um guarda-vestidos.
eu acordava todos os dias. comia sopinhas de leite, umas vezes com nesquick, outras só com açúcar branco, e entre as tarefas normais de quem tem de ajudar em casa ou no campo, brincava também. mas... havia ali uma hora que a sensação de ilusão se instalava e eu fechava os olhos com muita força, os punhos cerravam, os lábios contraíam-se, para tentar acordar. 
com o tempo foi diminuindo. a idade traz ferramentas de ilusão e
ocupa-nos o tempo em futilidades trágicas momentâneas que só quando nos obrigamos a parar, a olhar para o relógio, permitimos que o choque da realidade se instale. 
porém, ainda hoje, muito de quando em vez, surge essa sensação... depois questiono-me, e se eu for ainda criança, ainda estiver a dormir na minha cama, ou melhor, e se eu ainda estiver na barriga da minha mãe será que ainda vou acordar? será esta a realidade que o anjo ao meu lado me conta para me fazer esquecer na hora do parto, tocando com o seu indicador na aba dos meus lábios, pedindo segredo? para que eu sorria sempre de forma espontânea e infantil? será, será?
não claro que não. o tempo não cura tudo, acho que ele não cura nada! assim como não dá respostas no tempo que a gente quer! e por isso, talvez, nunca cheguem! 
por outro lado, faz-nos esquecer. só me lembro de como fria era a pele dela, envolta no cetim branco e reluzente...

há coisas no mundo para as quais ainda hoje não tenho respostas...

por que se fala em luz se quando fecho os olhos é tudo escuro?

nem tenho a noção da quantidade de gente que nasce e morre por minuto no mundo... nem sei por que razão nos alegramos tanto com um nascimento quando não sabemos lidar com a morte...

há coisas no mundo para as quais ainda hoje não tenho respostas...
o que há para além disto que sou, que vejo, que sinto, que cheiro, que toco? 

também não sei se quero saber.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

oh mundo, mundo

eu gostava que o mundo fosse diferente.
eu gostava de ser uma pessoa diferente.
talvez noutro mundo... menos mouro.
eu gostava de ser mais calma. mais paciente. mais confiante. mais assertiva.
meste mundo d'agora é difícil manter o sorriso até quando não é nada connosco por que se passa demasiada coisa à nossa volta que não causa comichão no umbigo mas começa a criar arrepios ao fundo da espinha.
é muita indiferença. é muita maldade. não há segundas oportunidades.
há ingenuidade que se confunde com burrice. e às melhores intenções da senhora do lado alguém lança uma palavra maldosa, um olhar reprovador; instala-se o medo, o desdém ao que era para ser um desabafo.
num mundo melhor o mundo era mais água e menos benção; mais chocolate, mais vinho, mais galhofa que ecoa na gargalhada efusiva de um copo a mais, perdidas as horas desde que nos juntámos.
mas num mundo diferente eu também seria uma pessoa diferente, inevitavelmente.
talvez eu continuasse a não gostar de mim por completo sem com isso pôr em causa o meu amado amor próprio, que tenho sim, essa flor que se sopra ao vento e se pede que em todas as noites os céus brilhem por estrelas cadentes ou fogos de artifício que não sei se beijam a lua ou os meus olhos.
mas enfim, num mundo diferente talvez eu não tivesse o que tenho hoje, consciência. e por isso eu gosto de mim - às vezes ingénua, às vezes burra, às vezes difícil, às vezes bela...