sexta-feira, 26 de novembro de 2010

estranho estrangeiro

as   situações   mais   marcantes  de  uma criança são criações  das suas crenças   enquanto   individuos   e   consequentemente   serão    o    resultado  na  sua  maioridade.

das  crenças  infantis,  as minhas,  mais fortes que tenho desde garotinha são a má imagem e o que reportavam os dentes d´ouro. para mim só quem tinha aquilo eram os maus da fita, as bruxas e outros quaisquer. e sempre tive medo de quem os usasse. por mim estava sempre tudo  bem desde que não visse. até podiam ter a boca cheia de coroas desse metal desde que os da frente, pelo menos, fossem minimamente semelhantes aos originais.
a primeira situação que me marcou era ainda menina; estava sentada na mesma mesa com um senhor - português - que além do bigode farfalhudo e dos gestos saloios exibia com grande orgulho o seu dente de ouro. quanto  mais  olhava para ele melhor via aquele dente amarelo  reluzente  e  mais  ouro  me  parecia  logo  mais  horrorizada  ficava.  era  das  coisas  mais  aterrorizantes.  ele  tem  um dente  d´ouro,  dizia  eu  aos  meus  pais.
mais tarde, já eu era aquilo que os velhinhos têm a mania de chamar, uma mulherzinha, confrontei-me com outra situação que me deixou exactamente no mesmo estado instável e desconfortável. foi  num  dia  a  caminho  da  terra  vizinha para apanhar a caminete-carrera  para a escola, por volta das sete e meia da manhã em que, sem dar conta, apareceu  à  minha frente  um  homem,  do leste,  dos primeiros  que haviam  aparecido na zona,  nunca lhe ouvia palavra até àquele dia fatídico quando o  vi a rir de sorriso amarelo,  do ouro. o homem tinha um ou dois dentes logo à frente em ouro!!   o  resto   do   dia   fiquei   a   martirizar   aquela   imagem   horrorosa. mais  que não  fosse  também por  causa do susto que apanhei.

***

eu sou uma pessoa tímida. não gosto de estranhos. não gosto de estranhos estrangeiros. temos um pré-conceito formado de tudo quanto nos é desconhecido. e a minha timidez não me permite mais que um sorriso amarelo, daqueles de simpatia mínima e indispensável. mas saliento: não sou racista nem xenófoba nem homofóbica ou qualquer outra coisa discriminatória!
ontem à noite fui fazer o primeiro jantar de natal, deste ano, de uma associação de empresários do comércio tradicional de uma pequena cidade aqui ao pé. saí tarde. tardíssimo para quem tem de se levantar às sete e pouco da manhã no dia seguinte. mas ainda assim antes de ir para casa convidei a colega a ir beber um café ou qualquer coisa ali ao pé. sim senhora, lá fomos nós.
abençoado ângulo ocular! permite-nos visualizar o que está atrás de quem conversamos, do lado direito, do lado esquerdo... entrámos e pedimos dois chocolates quentes. o dela com leite, o meu com água. e sentámos numa mesa junto do aquário. na mesa ao lado e ligeiramente à frente da nossa reparei nuns quatro ou seis homens do leste, não sei se eram quatro ou seis por que as mesas desse bar são rectangulares; eles eram alguns - além de que, às duas e pouco da manhã o cansaço já nos tolda a vista e a paciência. enquanto conversávamos reparei mas sem dar a grande valor a isso que olhavam para nós inúmeras vezes. mas... como há homens que nunca viram uma mulher ou parecem nunca ter visto... não se pode valorizar estas coisas. e como são estranhos estrangeiros... acho que a curiosidade deles é facilmente atiçada.
a dada altura vi um deles levantar-se. e vi os colegas a rirem-se. vi o fulano pegar numa revista e viu-o dirigir-se à nossa mesa. sempre olhando para ela e dando atenção ao que me dizia: "...e depois ele como não gostou do que eu lhe disse nunca mais me chamou para..." e interrompeu-nos. "discu'pa minina, você faz o que quiser. si quiser guardare guarda ou rasga revista, num interessa! ispero qui goste!". faltavam-lhe os dentes da frente. dois ou três, acho eu. aparentava os seus trinta e muitos anos gastos, pouco cabelo e esgadelhado, olhos azuis ou cinzentos, roupas baratas, velhas, sem graça... aspecto de quem vem de outro país, de outra cultura, de outro mundo. fiquei sem jeito. a revista estava aberta no meio publicitando uma das belas maravilhas: os açores. e sob uma das colinas estava um desenho feito a esferográfica azul. retrato de uma menina de olhos grandes, rabo de cavalo, encasacada, sem pormenores na camisola. era um retrato meu. percebi assim que ele pousou a revista. sorri. disse-lhe "'tá bem!" num tom seco e distancial. fiquei sem jeito. atrapalhada. devo ter corado. apeteceu-me rir da situação, no bom sentido, sempre que fico sem jeito rio-me, é a melhor maneira de lidar com uma situação constrangedora. ainda deixei escapar um sorriso mas não olhei mais para o grupo, envergonhada como estava... aos poucos, um a um, foi saindo e ainda vi o autor do desenho a dizer adeus bracejando a toda a velocidade como se estivéssemos a quilómetros de distância e uma relação fortíssima. nem sequer olhei. quando vi as horas já eram duas horas e trinta e três minutos. "tenho de me ir embora, desculpa querida." ela pagou os chocolates quentes e saímos. antes de sair ainda tive oportunidade de dizer à dona do bar para que ela me guardasse a revista até à semana seguinte que lá passarei a buscar para ficar com o retrato do não-sei-das-quantas, estranho estrangeiro. agora, entre nós, eu até gostei do desenho, observei as linhas, os traços, a figura. a senhora comentou a graça. agradecemos e saímos.



p.s.: semana que vem posto a foto do desenho caso a senhora cumpra a promessa de guardar/conservar a revista até lá.

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