sexta-feira, 3 de setembro de 2010

bengala do avô manel

impressiona-me coisas tão simples como os objectos do uso diário são capacitados para nos remeterem a um déjà-vu repentino e inesperado. outro dia falei-vos das matrioskas. não vos contei que comprei umas para mim. um conjunto de cinco elementos, de linhas simples, as cores tradicionais. na verdade, o meu namorado ofereceu-mas e... agora que falo nisto imagino-os juntos, ele e o meu tio, a fumar o seu cigarrinho, à entrada daquela garagem onde brinquei tantas tardes de sábado e adivinhava lá pernoitar. oiço, ao longe, o som das araras enormes, sempre me pareceram aves enormes, e o sol a descer no horizonte, atrás de uma serração antiga, e todos nós ali como se nada, nunca, tivesse mudado.
comprei-as na feira de artesanato internacional que decorreu nos últimos dias de agosto em peniche. é já a segunda vez que lá vou, e este ano tive a proeza de lá ir umas quatro vezes, e comprar. e regatear, também. sou muito regateira, regateio tudo. o ano passado deixei-as ir mas este ano, não. não podia dar-me a esse luxo. sentia um apelo no coração cada vez que as via... mas eram todas tão giras e eram tantas... só as comprei no último dia, na última hora que tinha oportunidade para tal.
todavia, nos dias antes, fui namorando outros objectos como aquelas cadeiras trabalhadas à mão pelos africanos que as elaboram com motivos naturalistas ou animalescos. comprei duas por cento e quinze euros. foi um bom negócio. o vendedor queria setenta euros cada uma. depois, mais à frente, completamente imprevisível dei de caras com umas bengalas. e as bengalas recordaram-me o avô paterno. sempre o conheci velho e tinha o mesmo nome que muitos outros velhos daquele época - manel - e era para mim o avô manel até por que era o único que tinha, o materno morrera de enfarte era eu pequenina, mal me lembro dele. mas o avô manel simbolizava para mim a experiência, a vida. os anos árduos da lavoura talhara-lhe as mãos robustas, os anos da vida tingiram-lhe os escassos fios de cabelo, e aquele olhar azul envelhecido tinha uma ternura que nunca mais vi em ninguém. sempre o conheci velho, sempre velho e sempre acompanhado da sua bengala típica de muitos outros. não sei que madeira era aquela, recordo-me que tinha dois tons, amarelo e preto, o toque era muito suave, talvez tivesse sido envernizada... claro que, estas bengalas com que me deparei na feira, em nada eram familiares à do meu avô manel mas foi o facto destes objectos ainda existirem em formas tão toscas que me recuou no tempo quando parei no meio do caminho para as observar. o meu avô já morreu já faz se calhar uma década e não sei o que foi feito da sua bengala...

1 comentário:

  1. "oiço, ao longe, o som das araras enormes, sempre me pareceram aves enormes, e o sol a descer no horizonte, atrás de uma serração antiga, e todos nós ali como se nada, nunca, tivesse mudado."

    Gosto muito deste tipo de escrita. tudo o que nos remeta para as recordações, monólogos também gosto de ler.

    Cumprimentos

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