dias de chuva como este merecem outras melhores recordações dos meus tempos de míuda. naquela casa onde passei dezoito anos da minha vida muita coisa me construiu por dentro. o cuco ao longe, naquele mato, quase inaudível; a cigarra nas tardes mais quentes de verão atiçando a preguiça; o vento assobiador às frestas da janela; a chuva a cair no alpendre. nestes dias, na lareira, estalava os galhos de madeira seca apanhada para o efeito. bocados de vimes. pinhas. cavacos. madeiras mais que velhas. além das camisolas velhas e desusadas, sem graça e de lã, e das meias grossas guardadas de um ano para o outro só mesmo aquele crepitar dava algum alento quando não se podia sair de casa. rascunhava muito com lápis de todas as cores e de todos os tamanhos em qualquer canto dobrado de uma folha qualquer. jogava ao galo sozinha e conseguia perder. via os desenhos animados sentada à chinês no cobertor estendido no chão. e colava o nariz à janela a ver a chuva a cair nos campos de trigo que o pai amanhava ora uma sementeira de batata ora uma de trigo; ano sim, ano não era uma colheita diferente. o armazém era gelado não apetecia brincar a nada ali nem andar de bicicleta. muitas vezes estendia-me no sofá a ver o fogo a dançar e a brincar.
claro que naquele tempo eu só sabia o quanto era bom de comer; nunca me ocorrera analisar assim as torradas; talvez fosse por isso que a Pessoa perdurava um fascínio eterno pelas crianças e daquela inocência própria de fazer tudo pelo sentir e nunca pelo pensar. lá fora a chuva escorrega nas janelas grandes da minha futura casa. o céu, entre prédios, está cinzento como todos eles e só a vegetação ruim dos caniços se mexe mais abaixo. a casa ainda está fria, não é de todo e ainda, quente daquele maravilhoso calor que só os lares têm. mas já tem cor. tenho de pôr uma nota, algures, para numa das próximas compras de electrodomésticos a escolha recair na torradeira e nunca me poderei esquecer de repetir a torrada que a minha mãe me fazia em garota. eram tão boas e as minhas filhotas, nesse dia, irão gostar também.
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